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25/09/2015

Pedido de casamento


Acabo de chegar em casa após meu último jantar enquanto namorado da Adriana. Amanhã é o grande dia. O dia da minha vida no qual eu pedirei minha namorada em casamento. Como imaginei, os momentos que antecedem esse acontecimento são uma grande mistura de sensações, deixando-me ao mesmo tempo eufórico e anestesiado, entre outros paradoxos que nem consigo escrever aqui.

Chove lá fora, como choveu já tantas noites antes dessa aqui. Meu solitário quarto com suas centenas de livros, carros e miniaturas inanimadas permanecem iguais ao que sempre foram antes. Mas algo hoje não está igual. Meu coração se despede com uma estranha naturalidade da vida que estou deixando. Eu nunca fui noivo, e amanhã terei a oportunidade de ser. É um passo, um grande passo. Talvez o maior deles. Não me senti assim no meu primeiro dia de aula, não me senti assim quando escolhi minha faculdade. Nunca me senti assim antes de qualquer entrevista de emprego ou primeiro dia de trabalho, mas hoje a noite, após despedir-me da minha amada namorada, estando agora a escrever pela última noite sem nenhuma aliança nos dedos, isso realmente mexe comigo.

Não tenho medo, ajo até estranhamente natural diante de tudo. Apenas uma parcela em mim, a parcela do pequeno garoto que fui (e fiz questão de não deixar morrer completamente) me lembra de que esse dia foi muito esperado. O Cristiano de uma década ou duas atrás já pensava nisso como uma gigantesca aventura a percorrer. Gigantesca, porém distante, longínqua, e assim passava a não me importar e a esquecer.

Mas eis que o dia chegou. Amanhã pedirei a uma incrível mulher que me compartilhe a vida. Ouso propor a ela que suba ao altar de Deus comigo. É uma grande responsabilidade. Amanhã não farei "apenas" um pedido. Amanhã direi a ela que estou pronto. Pronto para não ser mais um menino. Pronto para abdicar meu quarto com a parede da cor que escolhi e das coisas nos lugares que eu deixei. Estou pronto para num futuro próximo deixar o meu bairro e não encontrar mais amigos de infância em pequenas caminhadas ao redor do quarteirão. Pronto para não ouvir mais as campainhas constantes das visitas inesperadas para conversar na sacada ou jogar vídeo-game. Bom, ao menos o vídeo-game eu vou levar quando me casar. Mas já não terei tantos amigos próximos para jogar os cada vez mais raros campeonatos de futebol. Tudo bem, é a vida. E hoje passo mais tempo olhando para a casa que há de chegar, para os filhos que hão de chegar, para os momentos que eu sei que terei do que para aquilo que eu vou deixar.

Crescer deve ser isso: É abrir mão daquilo que muito se amou sem que se doa tanto. É sentir um frio na barriga às vésperas de um dos dias mais importantes da vida, mas sem que haja desespero e vontade de voltar atrás. Estou pronto enfim, e sei que Deus me ajudará nessa grande aventura que começa agora. Terei uma noiva e serei um noivo. Que eu consiga e saiba honrar o sim dela, se vier. Que eu seja sempre merecedor do sim dela. Amém.

18/05/2015

Quase-conto de um pequeno encontro

Fazia frio na rua enquanto as pessoas passavam apressadas com seus agasalhos em todas as direções. Eu estava em minha mesa preferida do costumeiro café onde gostava de me informar dos assuntos do dia. Amante da rotina, não me era estranho a maioria dos rostos que como eu frequentavam o local. O palco estava montado para aquela que parecia ser apenas mais uma manhã como todas as outras: o Seu Domingos no balcão atarefado em executar os pedidos, a garçonete cujo nome nunca perguntei atendendo às mesas do lado do pequeno salão onde minha mesa ficava, a outra garçonete mais para perto da porta. 

Mas não era uma manhã qualquer. Duas mesas à frente encontrava-se uma moça delicadamente vestida. Com o casaco apoiado em outra cadeira, expunha uma blusa em tons claros enquanto se distraia com um livro. Sua imagem ali sentada me passou um ar de tranquilidade e ternura. Ainda que nunca a tivesse visto, senti-me como se estivesse em casa a olhar para uma velha conhecida. Fiquei a pensar o porquê daquela sensação. Eu não era de me aproximar das pessoas, e sentia-me muito bem e satisfeito apenas comigo mesmo. Não era tido por casmurro apenas pela quietude com que levava a vida. Se não era dos mais vívidos, ao menos não era amargurado. Portanto aquilo que senti quando olhei para aquela mulher realmente me deixou intrigado.

Pela primeira vez em muitos minutos, ela levantou a cabeça e resolveu olhar em minha direção. Demorei algum tempo até perceber que estive ali a encarando durante toda minha divagação mental. Tentei disfarçar, mas já era tarde. Ela levantara de sua mesa e estava em minha direção.

- Por que está me olhando? – Questionou-me com o sorriso mais doce que minha lembrança guarda.

- Me desculpe. – Respondi, virando o rosto com a estúpida vergonha que sempre me acompanhava. Ficamos em silêncio por uns eternos trinta segundos. Talvez ela estivesse esperando alguma reação minha. Talvez estivesse me esperando convida-la para sentar.

- Então tudo bem – Ela disse, por fim. – Até logo!

Despediu-se. Mas não estava tudo bem. Numa fração de segundo atrasada, sempre atrasada, fui invadido pelas mais variadas respostas que seriam tão mais fiéis ao que sentia. Por que a olhava senão por ser bela? Qual motivo a mais precisaria senão ela própria, com sua beleza tão singela que ia além dos traços físicos e terminava em uma aura quase angelical que pairava sobre sua feição. Era linda porque era, porque Deus quis assim, e por isso a olhava, não como quem a desejasse – e eu a desejava, sim - mas como quem descansa a alma na beleza que vê. Isso não importava agora. Ela havia partido para qualquer lugar, sem ter deixado qualquer detalhe que eu pudesse localiza-la. 

Paguei meu café e saí. Na rua as pessoas continuavam a passar. Olhei para todas elas e não vi nenhuma. Estava sozinho, por fim, como sempre estivera.

14/05/2015

Apenas mais uma carta de (ex) amor

Não deu. Se estás a ler esta carta é porque não estou tão perto o suficiente para conversarmos ao pé do ouvido. Significa que não deu. Suas escolhas o levaram para tão mais longe de mim que qualquer acaso poderia afastar. Já não estás nessa cidade, já não estás em meus círculos, já não fazes parte da minha realidade.
Tínhamos tantos sonhos iguais, lembra-se? Éramos tão parecidos que parecia fato vivermos para sempre juntos, algo de que nem se é preciso planejar. Apenas aquilo nos diferenciava, aquele pequeno detalhe que tudo mudou: você queria o mundo, eu queria nossa casa. E não estava louca por pensar assim. Lembra-se quantas tardes perdemos em nosso paraíso infinito no quintal do fundo, onde ali haviam duas árvores uma rede? Lembra-se de que nada mais precisávamos para rirmos de nós mesmos e dos outros sem que nada nem ninguém nos condenasse?
Mas você queria mais. Mais? Tivestes de menos. Menos carinhos dos carinhos que eu fazia em ti. Menos tempo para se perder em tardes ociosas ao canto indefinido dos pardaizinhos que ciscavam pelo chão. Conquistastes o mundo na cidade em que vives mas perdestes tua casa em troca de meros imóveis de luxo.
Sei que em nossas cabeças surgirão desculpas. "Não era para ser", inventaremos em algum momento de consolo próprio. Mas você e eu sabemos que pode ser que fosse, e que o fardo de carregar consigo as consequências da vida pode ser pesado demais para não decidir com o destino.
Existe o destino? Creio eu que não. O destino está mais para as chatas leis de um tal de Newton. São consequências, tal como um impulso físico, uma mera consequência. Tens o que decidistes ter e perdestes o que não quisestes. O destino por fim sempre se casa com a lógica. Mas e o coração? Este se engana. Não pelos outros, mas por nós mesmos, a cada desculpa esfarrapada que inventamos e chamamos de sabedoria.
Talvez tenha sido culpa minha, talvez tua. Talvez não haja culpa, mas apenas as consequências de dois corações incautos que resolveram a seguir a si próprios. Deveríamos saber que a razão sempre vence: "o destino por fim sempre se casa com a lógica", lembra-se? Mas tanto faz. Nossa história é tão boa quanto todas as outras. Lamento apenas o fim precoce, mas de qualquer modo haveria fim.
Adeus.

29/03/2015

Uma lembrança.

Lembro-me como se fosse ontem da primeira festa de minha família após a morte do meu avô. Talvez não como se fosse ontem. Não me lembro se era um casamento ou uma festa de aniversário. Não me lembro de nada da festa, de quem a celebrava, de quem estava ou onde era, mas me lembro perfeitamente de algo que aconteceu e por um motivo inútil me voltou à tona.

Estávamos em uma mesa mamãe, papai e eu. Não me lembro sobre meus irmãos, eles não ficaram na memória. O cantor da festa resolveu cantar Nelson Gonçalves, e em sua ignorância sobre o contexto das pessoas, iniciou cantando ♪ Naquela mesa tá faltando ele e a saudade dele tá doendo em mim...

Vovô gostava de Nelson Gonçalves, gostava dessa canção.

Olhei para a mesa onde estava a minha avó na ocasião tão mais jovem e lúcida, distraída, conversando com alguém. Parecia não notar a triste coincidência que tomava o momento. Olhei para minha mesa, para o meu pai, e o vi olhando para o cantor. Olhar distante. Virou para mim e perguntou: "Percebeu a música?". Vi que estava triste. Em toda sua discrição peculiar ainda se mostrava triste. Não me lembro o que respondi a ele, mas eu percebi sim. 

Percebi aliás muitas coisas para um garoto de onze anos. Percebi a música, percebi a coincidência doída. Percebi a falta que alguém pode fazer. Percebi, talvez pela primeira vez, as consequências da morte. Percebi até o que não queria perceber: percebi que um dia alguém faltaria também em minha mesa. Naquele dia pai, percebi que deveria valorizar cada momento vivido. 

E assim tem sido.

Se não podemos segurar o tempo e o final do destino é sempre o mesmo, resta ao menos viver bem. Resta ao menos aproveitar. O remorso é o purgatório que se tem em vida. Como o da morte, este também cabe a nós decidir entrar.

18/03/2015

Insônia.

Acordou no meio da noite sentindo uma forte dor no peito. No quarto escuro conseguiu encontrar o caminho da porta ainda que sentisse suas mãos trêmulas e o coração acelerado. Em seu pequeno apartamento onde vivia sozinho, ao invés de pedir socorro, escolheu se sentar em sua velha escrivaninha intencionalmente posicionada próximo à janela do cômodo que também servia de sala de estar. De certa forma, não sentia medo da morte. Tinha inclusive uma certa atração pela ocasião, por isso mesmo começou a escrever mensagens aos que ficariam, temendo não haver mais oportunidade para o fazer pessoalmente.

Lembrou-se das coisas que nunca disse e que sempre teve vontade. Pensou em seu tio que ficara em sua cidade natal e resolveu dizer-lhe o quanto sentia saudades. Lembrou do velho colega de trabalho e resolveu confessar-lhe sobre uma trapaça que lhe levara vantagem em uma aposta acordada anos atrás. Lembrou também do filho do porteiro, André, que havia conhecido alguns meses antes e sabia que estava a ingressar em um curso profissionalizante e recomendou-lhe seguir adiante os estudos, pois sempre valeriam a pena. Pensou em sua antiga amada, não a ex namorada, mas aquela do colégio que nunca se declarou, e resolveu dizer-lhe todas as coisas bonitas que sentiu na época e de algum modo ainda sentia.

E assim repassando rostos na memória, foi deixando recados, confissões, mensagens e conselhos a cada um que estimava, pois afinal Deus lhe havia dado a dádiva de prever sua morte, não deixando-o partir com um pingo de remorso por algo que não disse ou fez. Passadas as horas, terminou, e um raio de luz já despontava no topo do prédio do outro lado da rua. Não sentia mais dor, e nem questionou sobre o que poderia ter sido. Apenas levantou da escrivaninha e ralhou a noite não dormida por conta das horas enfadonhas de trabalho que teria pela frente.

Despiu-se, banhou-se, vestiu-se. E com apenas uma fruta fez o seu desjejum. Saiu para o trabalho e, estando vivo, esqueceu-se do que escrevera. E o tio não recebeu a mensagem, e o amigo não recebeu a confissão, e o filho do porteiro nunca leu seu conselho. Sua amada continuou sem saber de seu amor e todos os demais ficaram indiferentes e ignorantes às palavras dele.

O dia passou, e o outro. Como se a morte não existisse e um dia não chegaria. Ele passou o dia, e o outro, como se não existisse sentimento. Como se o importante da vida fosse só a vida, e não as pessoas.

08/03/2015

Segura a onda Dorian Gray...

Vejo no retrato aquele que fui. Retrato calado, imóvel e que tanto me diz sobre a vida. Envelheço todos os dias, e todos os dias todos envelhecem comigo. As pessoas mudam, os lugares mudam, dando a impressão de que nada muda.

Mas quando olho para meu retrato antigo e já não me reconheço nele, percebo que o tempo passou. Vejo em mim as marcas que o tempo me trouxe, o olhar já um pouco cansado por ter visto muito mais coisas ruins do que gostaria de ver. Vejo o corpo em mudança, e sua perecidade me salta aos olhos.

Sou aquele do dia 13 de maio do ano que nasci. Meu nascimento ficou para trás, minha infância ficou para trás. A juventude já vem passando me lembrando que eu também irei passar.

Os dias não são os mesmos dias. A cada manhã estou mais distante do meu eu daquele retrato. Daquele eu que me olha como se já soubesse o que serei. Meu velho retrato é só uma lembrança. E é só isso o que um dia serei.

08/01/2015

Daquele (ou deste) tempo.

Minhas saudades não são nostálgicas ou deprimentes. Felizmente nunca encontrei culpa nelas nem sinais de arrependimento aterrador. Se tenho saudades de algum ponto da vida é pela expectativa do que vivi depois daquilo. Tenho saudades de todos os momentos e de tudo o que me trouxe até aqui. Saudades das possibilidades que tive e de certa aproveitei.

Sinto saudades também do que vivo. Sempre tive uma comoção exagerada para me despedir dos meus dias e das situações. Do quarto de hotel onde não passei mais de três noites, de alguma estação de metrô onde fiz conexão, da rápida conversa que tive com algum transeunte para pedir informação. Sempre saio olhando para trás para gravar a última imagem daquilo ou daqueles que sei que nunca mais verei.

A saudade me acompanha e me avisa do finito. Dói-me a despedida da vida, a contar dos dias a menos que me aproximam do fim. Só resta a mim seguir adiante com a alegria que me fornece o saber viver. Para que eu siga sentindo saudade. Para que um dia eu tenha saudade do hoje por também saber o que eu ainda vou viver.
 
Copyright 2014 Cristiano Borges