Li certa vez um provérbio chinês que dizia: "quando um homem morre é como se uma biblioteca inteira se incendiasse". É? Não tenho tanta certeza. Longe de querer questionar a sabedoria oriental, mas sendo eu um amante dos livros e das bibliotecas, sentiria com muito pesar a destruição de uma delas, mas não sei se conseguiria igualar à morte de alguém. Dentre as informações guardadas em uma biblioteca as mais penosas a serem perdidas talvez seriam as memórias (diários, exemplares únicos, manuscritos, catálogo de fotos e coisas assim), mas as bibliotecas (ricas que são) não armazenam sonhos, não armazenam surpresas, pois afinal elas são o que possuem. O ser humano não.
Sempre tive o costume de criar personagens imaginários e ficar analisando-os, explorando suas experiências, sentimentos e consequências. Tenho me atentado ultimamente a um rapazinho que vive em um mundo onde não existe a morte. As pessoas que lá vivem sempre viveram e seguem vivendo, em estágios de vida infinitos (depois de velhos ficam ainda mais velhos, e depois mais velhos ainda e mais e mais velhos. Enrugam-se tanto que em determinado ponto suas peles ressecadas se soltam e dão espaço a novas peles. Existem doenças, e você pode chegar ao cúmulo de perder alguns órgãos (e os benefícios que esses órgãos trazem), mas nunca morrer. Resumindo: ninguém nunca partiu.
Esse mundo é muito grande, muito maior que o planeta Terra. E quando alguns de seus membros resolvem ou precisam mudar-se para outra parte do mundo, dói neles também a despedida. Existe amor nesse mundo, sentimento, comunicação e tudo o que existe por aqui também. Só a morte não existe.
Ou não existia.
Em resumo, certo dia o avô desse rapazinho resolveu dormir e não mais acordar. As pessoas pensavam tratar-se de um coma ou algum sono maior que o normal (eles costumavam dormir o mesmo tanto que nós). Os médicos não encontravam os sinais vitais (todos os órgãos parados) e o corpo se enrijecendo e ficando frio. Era a morte que por algum motivo qualquer (e eu pensei vários) resolveu aparecer naquele planeta. Eles que sabiam lidar com a saudade da partida, com a separação das famílias, brigas, desentendimentos, injustiças e outras tantas dores, se surpreenderam com algo muito pior do que imaginavam: com a tal da morte.
O susto foi grande pois a morte não tinha o contexto de inevitável e eles não se encontravam com ela constantemente como vivemos por aqui. A morte em si é dura, cruel, mais cruel do que qualquer partida.
Penso que não sofremos o luto suficiente que uma morte significa. Existe a vida e de repente não existe mais. Existe uma pessoa ali, e de uma hora para a outra não mais, e acabaram-se as conversas, as mensagens, o olhar, as ideias, as opiniões. Acaba-se tudo. Consigo imaginar um mundo onde eu nunca mais converse com alguém que amo, desde que eu saiba que ela existe e está bem. Mas depois que se vai, o que existe para quem ficou?
Creio na vida eterna, e para mim além da questão da fé, é a resposta mais plausível, mas não entro nos méritos filosóficos para apenas pesar sobre este ponto: a morte deveria ser tratada como algo natural, mas jamais normal. Encara-se o luto, lamenta-se a perda, sofre-se. Sofre-se pela falta, pela saudade e também pelos que não sentiremos falta. Quão grande é uma simples vida humana. Quão grande é a vida daquele que já perdeu a lucidez, a vida daquele que nunca emite uma opinião, daquele que promove tantos discursos e daquele que ninguém enxerga na rua.
Quando os olhos de alguém se fecham para nunca mais abrirem de novo, não é como se uma biblioteca se incendiasse. Ali não se minam apenas suas informações, seu histórico, sua memória. Ali encerra-se toda uma possibilidade ao mundo. Não é normal... para mim nunca será.