Querida;
Estamos sozinhos à mesa nesta noite infinita em que a chuva
cai lá fora com um ruído monótono de choro. Estamos sós nesta noite de saudade
e nunca foi maior a nossa companhia, porque cada vez me sinto mais perto dos
mortos. A velha mesa da consoada foi-se despovoando com o tempo, nas despedidas
de cada filho, mas hoje eu não a sinto vazia, hoje quero recordar-me do
princípio de tudo, de mim e de você... Dá-me as tuas mãos, querida, e deixa
arder o lampião, enquanto eu falo baixinho, acompanhado pelo ruído de lágrimas
que se ouve lá fora.
Um dia destes temos que nos separar, e é natural que seja eu,
que sou mais velho, o primeiro a partir. Antes, porém, quero dizer-te que te
devo o melhor da vida. Foste tu que me desvendaste o amor que eu desconhecia. A
bondade e a ternura, que eu desconhecia. Não exerci talvez nenhuma influência
na tua alma, tu ao contrário apaziguaste-me. O amor era em mim um simples
impulso: você o cultivou, e pouco a pouco essa força nas tuas mãos se transformou
em sentimento religioso.
Olha para os meus cabelos todos brancos. Julgava que o amor
ia diminuindo com o tempo — e o meu amor não cessa de aumentar até à morte e
para além da morte. Na ocasião em que escrevo estas linhas, na idade em que já
desapareceram de todo as ilusões, sinto que a amo cada vez mais, à medida que o
tempo destrói o brilho da sua passageira beleza.
É certo: cada ano que passa é um laço que nos prende e quanto
melhor conheço a tua alma, mais me purifico ao seu contato. Não só fazes parte
do meu ser, mas da minha consciência. Chego às vezes a supor que tu és a minha
consciência. Por isso esta separação vai ser dolorosa, ainda que eu creia que
nos tornaremos a encontrar noutro mundo melhor. Não decerto para vivermos as
horas que passamos juntos à beira do lampião, penetrados um do outro e unidos
pelo silêncio, mas numa vida superior que antevejo e numa paz mais profunda.
Ainda assim tenho pena. Tenho pena das horas monótonas que correm — do tempo
que passa — da brasa que se extingue...
Foste o fio que ligou a minha vida desordenada. Há em mim um
ser desconhecido que me leva se não estou de sobreaviso, a ações que detesto. Basta
uma palavra tua e me detenho. Quando me conhecestes eu insistia em ser egoísta,
e nenhuma pessoa mais me interessava senão a mim mesmo. O que eu costumava amar
era sobretudo o diálogo comigo mesmo e com as minhas circunstâncias. Eu era
indiferente, e isto é um erro, mas tu me fizeste querer mudar. Sem sermões, me
mostrastes que a nossa vida é principalmente a vida dos outros, ou melhor,
compreendi que a ternura era o melhor da vida. O resto não vale nada. Não é por
a esmola da velha do Evangelho ser dada com sacrifício que é mais aceita no céu
que o ouro do rico — é por ser dada com ternura. O importante é a comunicação
de alma para alma. A mão que aperta a nossa mão, o olhar úmido que procura o
nosso olhar, o sorriso que nos acolhe, desvendam-nos o mundo. Às vezes é um nada
que nos faz refletir, é um momento, é uma figura que nos entra pela porta
dentro e de quem nos sentimos logo irmãos...
A chuva cai fora, com o ruído manso de quem se resigna e
aceita a dor... Cheguemo-nos mais para perto um do outro, meu amor, que eu faço
arder uma fogueira que nos aqueça neste último trecho do incrível trajeto que
me convidastes a caminhar contigo. A vida vista do fim para o começo é um só
momento. Nosso amor foi um só momento que se iniciou naquele primeiro olhar e
de repente já cá estamos sentindo as noites serem mais frias. Devo-te minha vida que já te dediquei, e ainda em débito te abraço. Fique cá comigo querida, aproveitemos o nosso momento.
Raul Brandão, adaptado.
Raul Brandão, adaptado.
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