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15/04/2016

A última declaração.

Querida;

Estamos sozinhos à mesa nesta noite infinita em que a chuva cai lá fora com um ruído monótono de choro. Estamos sós nesta noite de saudade e nunca foi maior a nossa companhia, porque cada vez me sinto mais perto dos mortos. A velha mesa da consoada foi-se despovoando com o tempo, nas despedidas de cada filho, mas hoje eu não a sinto vazia, hoje quero recordar-me do princípio de tudo, de mim e de você... Dá-me as tuas mãos, querida, e deixa arder o lampião, enquanto eu falo baixinho, acompanhado pelo ruído de lágrimas que se ouve lá fora.

Um dia destes temos que nos separar, e é natural que seja eu, que sou mais velho, o primeiro a partir. Antes, porém, quero dizer-te que te devo o melhor da vida. Foste tu que me desvendaste o amor que eu desconhecia. A bondade e a ternura, que eu desconhecia. Não exerci talvez nenhuma influência na tua alma, tu ao contrário apaziguaste-me. O amor era em mim um simples impulso: você o cultivou, e pouco a pouco essa força nas tuas mãos se transformou em sentimento religioso.

Olha para os meus cabelos todos brancos. Julgava que o amor ia diminuindo com o tempo — e o meu amor não cessa de aumentar até à morte e para além da morte. Na ocasião em que escrevo estas linhas, na idade em que já desapareceram de todo as ilusões, sinto que a amo cada vez mais, à medida que o tempo destrói o brilho da sua passageira beleza.

É certo: cada ano que passa é um laço que nos prende e quanto melhor conheço a tua alma, mais me purifico ao seu contato. Não só fazes parte do meu ser, mas da minha consciência. Chego às vezes a supor que tu és a minha consciência. Por isso esta separação vai ser dolorosa, ainda que eu creia que nos tornaremos a encontrar noutro mundo melhor. Não decerto para vivermos as horas que passamos juntos à beira do lampião, penetrados um do outro e unidos pelo silêncio, mas numa vida superior que antevejo e numa paz mais profunda. Ainda assim tenho pena. Tenho pena das horas monótonas que correm — do tempo que passa — da brasa que se extingue...

Foste o fio que ligou a minha vida desordenada. Há em mim um ser desconhecido que me leva se não estou de sobreaviso, a ações que detesto. Basta uma palavra tua e me detenho. Quando me conhecestes eu insistia em ser egoísta, e nenhuma pessoa mais me interessava senão a mim mesmo. O que eu costumava amar era sobretudo o diálogo comigo mesmo e com as minhas circunstâncias. Eu era indiferente, e isto é um erro, mas tu me fizeste querer mudar. Sem sermões, me mostrastes que a nossa vida é principalmente a vida dos outros, ou melhor, compreendi que a ternura era o melhor da vida. O resto não vale nada. Não é por a esmola da velha do Evangelho ser dada com sacrifício que é mais aceita no céu que o ouro do rico — é por ser dada com ternura. O importante é a comunicação de alma para alma. A mão que aperta a nossa mão, o olhar úmido que procura o nosso olhar, o sorriso que nos acolhe, desvendam-nos o mundo. Às vezes é um nada que nos faz refletir, é um momento, é uma figura que nos entra pela porta dentro e de quem nos sentimos logo irmãos...

A chuva cai fora, com o ruído manso de quem se resigna e aceita a dor... Cheguemo-nos mais para perto um do outro, meu amor, que eu faço arder uma fogueira que nos aqueça neste último trecho do incrível trajeto que me convidastes a caminhar contigo. A vida vista do fim para o começo é um só momento. Nosso amor foi um só momento que se iniciou naquele primeiro olhar e de repente já cá estamos sentindo as noites serem mais frias. Devo-te minha vida que já te dediquei, e ainda em débito te abraço. Fique cá comigo querida, aproveitemos o nosso momento.

Raul Brandão, adaptado.

05/04/2016

Cotidiano

- Olá, como está?
Começo a pensar nas preocupações que carregava na mente até te encontrar. Penso também naquela ansiedade que me encontro para trocar de carro. Lembro do final de semana e das coisas boas que fiz. Lembro do resultado do exame exposto na última consulta. Sinto uma fisgada no joelho. Penso no meu time, nos meus pais, na crise política, no trabalho, nos que me amam e nos que me odeiam. Uma fração de segundos passa e concluo minha simples, sutil, social e mentirosa resposta:
- Estou bem, e você?
 
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